
Alguns meses atrás eu passei por uma das experiencias mais burocráticas que um brasileiro pode passar: vender um carro. E não estou falando da parte de anunciar o veículo e negociar o valor com o comprador, estou falando do que vem depois que tudo isso já está feito. Primeiro o vendedor preenche uma autorização de transferência, depois o comprador faz o mesmo. Em seguida vem, talvez, o grande problema: o comprador é responsável por fazer a vistoria veicular e pagar as taxas de transferência junto ao Detran, mas nesse momento, o carro ainda está no nome do vendedor. Você deixaria seu carro na mão de um desconhecido sem receber o pagamento antes? E se você fosse o comprador, pagaria antecipadamente algumas dezenas de milhares de reais por um carro que ainda não está no seu nome? Nesse momento nasce o carro de Schrödinger: ele está na posse do comprador, mas é de propriedade do vendedor. Ou alguém confia em outro alguém, ou ficamos nesse impasse.
A raiz desse problema está em uma palavra: plataforma. Na verdade, em seu plural: plataformaS. É que transferências veiculares e transferências financeiras acontecem em plataformas diferentes: a de veículos na plataforma do Detran e a de recursos financeiros na plataforma do SPB (Sistema de Pagamentos Brasileiro) e uma não está conectada à outra. O carro de Schrödinger nasce exatamente no momento de sair de uma plataforma e entrar na outra: transferir a propriedade do carro e depois transferir o dinheiro ou transferir o dinheiro e depois transferir a propriedade do carro? Mas e se existisse uma terceira opção? E se pudéssemos “transportar” o dinheiro e o carro para uma terceira plataforma, onde os dois coexistissem? O BACEN já teve essa ideia e ela se chama DREX.
O DREX nasceu para ser uma plataforma digital onde diferentes tipos de ativos coexistem. É como um zoológico: um micro ecossistema que foi construído de forma a permitir que ursos polares e girafas coexistam, por mais que tenham nascido em ambientes completamente diferentes. Com o DREX, seu carro e o seu dinheiro coabitam o mesmo mundo, ou a mesma plataforma, e, assim, aquele limbo que existia entre duas plataformas diferentes deixa de existir.
Na prática, funciona assim: sabe quando você começa um jogo e tem que criar um avatar, ou seja, um personagem digital que representa você? Pra entrar no mundo DREX é a mesma coisa e, para que o seu carro e o seu dinheiro entrem nesse mundo você precisa criar um avatar para eles. Esse “avatar” é o que chamamos de token. E existem empresas que fazem isso pra você, são as tokenizadoras. E por trás da tela, assim como o seu avatar em um jogo é, no fim das contas, um código de programação, o token que representa o seu carro também é um código. Um código tão complexo que é impossível alguém ter um igual, ou seja, no mundo DREX, o seu carro é só seu mesmo, pode ficar tranquilo. É que, assim como na plataforma do Detran há um registro de que aquele carro está no seu nome, no DREX também existe uma espécie de “livro de ouro” público, onde fica registrado que você é o único dono daquele token que representa o seu carro. Quem registra isso são as tokenizadoras, no momento em que criam o “avatar” do seu carro. E o mesmo vale para o token que representa o dinheiro da pessoa que quer comprar o seu carro. Aí não tem jeito, se o comprador estiver de olho no token que representa o seu carro e voce estiver de olho no token que representa o dinheiro do comprador, a única maneira é trocar esses tokens e deixar isso registrado no “livro de ouro”. E como ambos os tokens estão registrados no mesmo “livro de ouro”, dá pra fazer o que chamamos de smart contracts: contratos inteligentes que são executados automaticamente quando certos gatilhos são acionados. Você e o comprador do seu carro registram no “livro de ouro” um contrato de compra em que a transferência dos tokens do comprador para o vendedor funcionam como um gatilho que, automaticamente transfere o token do vendedor para o comprador. Pode até parecer complicado (e por trás da tela é mesmo), mas para o usuário, é tão simples quanto fazer um pix do carro dele.
Esse “livro de outro” é o que chamamos de blockchain. É uma tecnologia que registra todas as movimentações de tokens nesse mundo digital. Existem dois tipos de blockchain, a pública e a privada. E a diferença entre elas é bem literal: numa blockchain pública, os registros de transações de token estão acessíveis a todos, enquanto numa blockchain privada, os registros são acessíveis somente para as duas partes envolvidas nessa transação. A blockchain usada pelo DREX tinha um nome chique, Hyperloop Besu, e ela tentava buscar um equilíbrio entre o modelo público e privado. Isso porque, quando você vende um carro, você não quer que o mundo todo saiba que você está com dinheiro na mão, mas ao mesmo tempo, também quer que o Detran saiba que aquele carro não é mais seu, do contrário, você continuaria recebendo as multas de um carro que agora é de outra pessoa.
Mas a Hyperloop Besu não conseguiu chegar nesse equilíbrio e por isso, no último dia 04/11, o Banco Central resolveu desliga-la. É que várias soluções de privacidade e transparência que tentavam fazer a Hyperloop Besu atingir esse equilíbrio foram testadas ao longo das duas primeiras fases do DREX e nenhuma trouxe resultados satisfatórios. E aí não valia a pena ficar sustentando os custos de uma blockchain que não atendia aos requisitos do DREX. Mas isso não significa que o DREX morreu, como você deve ter ouvido por aí. O que aconteceu é que, agora, o BACEN vai buscar uma nova blockchain que atenda aos padrões de privacidade e transparência necessários. A terceira fase do DREX, que vai testar empréstimos com garantia de ativos tokenizados (como o seu carro, um imóvel, ou um título público), está mantida para 2026. Será a volta dos que não foram.
Augusto Melo é especialista em Open Finance e um cara antenado para cultura inútil. Eclético, pra dizer o mínimo, já passou por diversos mercados: ferroviário, automobilístico, infraestrutura e por aí vai, mas desde 2021 se dedica ao mercado financeiro, onde é Gerente de Transformação de Negócios em uma das maiores empresas de consultoria do mundo.
Augusto Melo é especialista em Open Finance e um cara antenado para cultura inútil. Eclético, pra dizer o mínimo, já passou por diversos mercados: ferroviário, automobilístico, infraestrutura e por aí vai, mas desde 2021 se dedica ao mercado financeiro, onde é Gerente de Transformação de Negócios em uma das maiores empresas de consultoria do mundo.