
Nos últimos dias, manchetes anunciaram o “fim do Drex”, como se o projeto de moeda digital do Banco Central tivesse sido encerrado. Mas não é o fim — é, no máximo, o recomeço de uma história que ainda não sabe em qual tecnologia vai se apoiar. O Banco Central confirmou que a plataforma atual será desligada e que a definição da nova infraestrutura ficará para o início de 2026.
A minha opinião é clara: sem blockchain, não é Drex.
Se a nova infraestrutura abandonar o registro distribuído — a essência que sustentava o conceito do “Real Digital” —, então estamos diante de outro projeto, e o nome deveria mudar. A tecnologia blockchain veio para ser o novo padrão de bancos de dados que fazem referência a informações financeiras. E, mais do que isso, representa uma arquitetura antifraude, transparente e auditável — exatamente o que diferencia um experimento digital de uma moeda soberana em ambiente seguro e distribuído.
- O que era o Drex — e sua conexão com a tokenização
O Drex nasceu como a versão digital do real, uma CBDC (Central Bank Digital Currency) que prometia reposicionar o Brasil na vanguarda da inovação financeira.
Desde 2020, o projeto se consolidava dentro da agenda BC#, com uma visão de integração entre moeda digital, tokenização de ativos e infraestrutura digital de pagamentos e liquidação. A proposta era criar uma plataforma de liquidação em DLT (Distributed Ledger Technology) que permitisse a interoperabilidade entre bancos, fintechs e emissores de ativos tokenizados.
Em 2023, o Banco Central iniciou pilotos com instituições financeiras e empresas de tecnologia, simulando emissões de títulos, transações tokenizadas e operações com stablecoins. O Drex seria, portanto, a espinha dorsal de uma economia digital interoperável, capaz de conectar o sistema financeiro tradicional ao universo tokenizado que já começava a emergir — e que venho analisando em meus artigos sobre FIDCs, TIDCs e tokenizadoras.
- A nova fase — por que a demora em rever a blockchain?
A decisão de desligar a plataforma Drex não surgiu de repente.
Há mais de um ano, os problemas de escalabilidade do Hyperledger Besu, tecnologia escolhida para os testes, já eram amplamente debatidos nos bastidores. A latência nas transações, o alto custo computacional e as limitações para processar grandes volumes já indicavam que a infraestrutura não estava pronta para operar em escala nacional.
Outro desafio vinha se arrastando desde o início: a privacidade dos dados financeiros. O Banco Central chegou a afirmar que “as soluções de privacidade testadas até o momento não demonstraram maturidade suficiente” para cumprir as exigências legais do sistema financeiro brasileiro.
Na minha visão, esse problema deveria ter sido resolvido fora da blockchain, em uma camada de privacidade (Layer 2). Fora da cadeia principal, seria possível preservar a segurança e a imutabilidade do registro distribuído, mantendo o núcleo da arquitetura intacto. A discussão sobre privacidade nunca deveria ter sido o argumento para abandonar o blockchain — mas sim o impulso para aprimorar o ecossistema.
O resultado é que, em 2025, o BC decidiu inverter a lógica: primeiro definir os casos de uso e só depois escolher a tecnologia. É um movimento que soa como prudência técnica, mas também como recuo estratégico. Por trás da cautela, fica a sensação de que perdemos um ciclo de aprendizado — e talvez de liderança — no avanço da infraestrutura digital soberana.
- Implicações para a tokenização e o mercado de capitais digital
Se a moeda digital no futuro não estiver em uma blockchain, as implicações serão profundas.
Primeiro, porque a interoperabilidade entre redes — essencial para conectar plataformas de tokenização, FIDCs, TIDCs e stablecoins — depende de uma base comum, auditável e aberta. Segundo, porque a ausência de uma arquitetura distribuída limita o interfaciamento com o Real Digital e com o ecossistema global de ativos digitais.
A tokenização é, por natureza, um processo descentralizado. Se o Drex seguir um caminho tecnológico fechado, baseado em bancos de dados convencionais ou infraestruturas proprietárias, perderemos a essência da inovação que permitia liquidação em tempo real, contratos inteligentes e transparência.
Por outro lado, o recuo tecnológico pode abrir espaço para que tokenizadoras privadas e híbridas assumam protagonismo na construção da infraestrutura digital do mercado de capitais. Se a autoridade monetária deixa o campo tecnológico em aberto, o setor privado tende a preencher o vácuo — com modelos mais ágeis, interoperáveis e conectados globalmente. Mas isso exige clareza regulatória e padrões técnicos, sob pena de fragmentar o ecossistema que estava começando a se consolidar.
- Conexões com meus artigos anteriores
Nos meus artigos anteriores, abordei em profundidade a evolução da tokenização no Brasil:
– “Enquanto os bancos tradicionais nadam em depósitos, as fintechs escalam com FIDCs” — mostrando como os FIDCs se tornaram a engrenagem de crescimento das fintechs de crédito.
– “Blockchain e TIDC: a revolução no mercado de capitais” — apresentando o papel da tokenização de recebíveis e da liquidez descentralizada.
– “Tokenizadoras: a nova espinha dorsal do mercado de capitais digital” — descrevendo como essas infraestruturas estão moldando o novo arcabouço financeiro brasileiro.
O Drex era, até aqui, o elo que unia todos esses movimentos. Sua arquitetura blockchain permitiria a coexistência entre tokens privados e ativos públicos, criando um ambiente unificado para liquidação e governança digital. Com a reviravolta, essa espinha dorsal parece ter sido temporariamente desconectada — e o setor agora precisa entender qual será o novo eixo de sustentação tecnológica.
- Pontos de reflexão
Foram anos de debates, pilotos e investimentos em torno do Drex. Não é apenas uma perda financeira; é um recomeço técnico e político. O Banco Central precisará esclarecer se essa “nova fase” será uma continuação evolutiva ou uma ruptura total com o conceito de moeda digital soberana baseada em blockchain.
Sem blockchain, não é Drex — e isso precisa ser dito. A decisão de mudar a infraestrutura tecnológica não é apenas uma escolha de engenharia, mas uma decisão de soberania digital. Se o sistema financeiro nacional abrir mão de uma rede distribuída e auditável, quem garantirá a integridade e a confiança no novo modelo?
O que parecia uma questão técnica agora se transforma em um debate geopolítico:
— O Brasil seguirá um caminho de soberania digital aberta e interoperável?
— Ou preferirá um modelo centralizado, mais fácil de controlar, mas menos transparente e menos alinhado com o futuro da tokenização global?
Epílogo — A sombra da soberania
Na minha carta ao mercado no início deste ano, mencionei o decreto assinado por Donald Trump que proíbe o uso de CBDCs nos Estados Unidos. A decisão americana foi justificada por motivos de privacidade e liberdade individual, mas teve impacto simbólico: um recuo da principal potência mundial na adoção de moedas digitais soberanas.
Hoje, diante da retirada do Drex, a pergunta se impõe: estamos diante de um problema técnico — ou de um receio político, inspirado pelo veto norte-americano? Se até as maiores economias hesitam em adotar suas moedas digitais, onde fica, afinal, a tão defendida soberania digital?
Talvez estejamos presenciando não o fim do Drex, mas o início de uma nova era de contradições — entre tecnologia e política, entre inovação e controle, entre o discurso da soberania e o medo da descentralização.
E essa, sim, será a verdadeira prova de maturidade digital de um país.