Foto: Reprodução
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Quando alguém me pergunta “por onde começo com IA?”, quase sempre a resposta que esperam é o nome de uma tecnologia. Mas, no mundo real, a curva que separa um teste simpático de um resultado consistente não é tecnológica — é histórica. O que diferencia produtos, margens e riscos bem resolvidos é a capacidade de transformar o que a empresa já aprendeu em ativo intelectual: regras de negócio que sobreviveram a ciclos, logs de decisão, exceções que o time domina, dados que não aparecem na vitrine, mas que contam o DNA do seu cliente. IA que funciona não nasce do zero; nasce do legado vivo — e entra na operação sem pedir licença ao core. 

Sei que a tentação de “recomeçar do nada” é grande. Em cada ciclo tecnológico aparece a promessa de apagar o passado e, como num passe de mágica, reinventar tudo. O problema é que o passado contém as cicatrizes certas. É nele que moram as justificativas que sustentam compliance, as regras que protegem margem, os atalhos que resolvem o atendimento nas horas críticas. E é aí que IA corporativa ganha corpo: quando aprende com essa memória e aciona decisões no fluxo — aprova ou não aprova, ajusta taxa, muda prioridade, alerta o gestor — de forma auditável e explicável. Não é um copiloto escrevendo um texto mais rápido; é a inteligência da casa amplificada e colocada em campo. 

Também por isso tanta iniciativa morre na praia. Construir um protótipo é fácil; escalar é outra história. A McKinsey estima que a IA generativa pode adicionar de US$ 2,6 a 4,4 trilhões por ano em valor — mas esse número só se materializa quando a inteligência sai do laboratório e passa a mover o dia a dia: SLA, limites, esteiras de aprovação, pricing dinâmico, gestão de risco. Não surpreende que apenas 11% das empresas tenham de fato escalado GenAI: o gargalo está na integração com o legado e na governança da decisão, não no brilhantismo do modelo.  

No setor financeiro, essa distinção fica didática. Veja o esforço recente do NatWest para unificar dados de milhões de clientes e reduzir o tempo de resposta a fraudes de dias para horas. O anúncio não fala em “modelo mágico”; fala em reorganizar a base de dados e a orquestração para que os modelos façam diferença onde interessa: no tempo de reação e na experiência do cliente. É legado + dados + IA, com trilha de auditoria e responsabilidade clara pela decisão. É assim que tecnologia vira produto — e produto vira confiança.  

O contrário também ensina. Quando a infraestrutura não acompanha, a conta chega rápido, do jeito mais caro: reputação, ressarcimento, retrabalho. O caso do Barclays, com um apagão de três dias que afetou pagamentos em massa e exigiu compensações milionárias, virou símbolo de um problema maior: a dependência de arquiteturas críticas pouco preparadas para picos, mudanças e integrações. Não é “culpa da IA” ou “culpa do legado”; é ausência de orquestração e governança na fronteira onde a decisão acontece. E esse tipo de falha está ficando comum o suficiente para mobilizar o Parlamento britânico a pedir relatórios detalhados de indisponibilidade aos maiores bancos do país. A lição é simples: modernização sem memória — e sem engenharia de confiabilidade — é só risco acelerado.  

O que funciona, na prática, é encarar a empresa como um organismo que aprende. Isso começa por reconhecer que cada “exceção resolvida” pelo seu time é um exemplo de treino. Cada regra que segura margem em cenário ruim é um feature. Cada negociação que evitou inadimplência é sinal. IA corporativa não substitui esse repertório; ela o codifica e o coloca para agir em escala, com trilha de decisão e versionamento. É por isso que eu insisto: o diferencial não é o modelo; é a memória aplicada. Modelos você troca. A sua base de aprendizado — construída no atrito do negócio — é o que ninguém copia de você. 

Esse é o ponto cego de quem ainda confunde prova de conceito com produto. POC é palco; operação é bastidor. No palco, a apresentação é perfeita. No bastidor, a pergunta é outra: quem assina a decisão? Onde está o rastro do “porquê”? O que acontece quando a exceção vira regra? Sem essas respostas, IA vira custo de inércia: mais retrabalho, mais indisponibilidade, menos transparência. Com elas, vira unidade econômica: tempo de decisão menor, NPL controlado, margem melhor alocada, elasticidade medida de verdade em pricing. É assim que tecnologia vira P&L — e não manchete. 

Então, se eu pudesse condensar o próximo passo em uma frase, seria esta: pare de tratar o legado como peso morto e comece a tratá-lo como biblioteca de aprendizado. Extraia o que essa biblioteca sabe, coloque uma camada de orquestração por cima — que integre dados internos, Open Finance e modelos — e publique decisões versionadas na ponta, com explicabilidade do que foi feito e por quê. Isso não é “revolução limpa”; é evolução bem-feita. É menos palco, mais memória aplicada. E é exatamente isso que diferencia quem promete de quem entrega.  

Ligia Lopes

CEO da Teros

Lígia Lopes é mestre em Economia pela USP, com experiência em consultoria econômica e banco de investimento. Especialista em inteligência de dados aplicada à análise econômica e estratégica, construiu sua trajetória unindo tecnologia e inovação. Na Teros, estruturou as áreas de Inteligência e Pricing, liderando o desenvolvimento de soluções para otimização de preços. Desde 2021, esteve à frente da implantação de Open Finance, ampliando a oferta de serviços e consolidando a empresa no mercado. Como COO, reestruturou produto, operações e RH, preparando a Teros para escalabilidade. Em 2025, assumiu como CEO, impulsionando a expansão e o crescimento sustentável da companhia.

Lígia Lopes é mestre em Economia pela USP, com experiência em consultoria econômica e banco de investimento. Especialista em inteligência de dados aplicada à análise econômica e estratégica, construiu sua trajetória unindo tecnologia e inovação. Na Teros, estruturou as áreas de Inteligência e Pricing, liderando o desenvolvimento de soluções para otimização de preços. Desde 2021, esteve à frente da implantação de Open Finance, ampliando a oferta de serviços e consolidando a empresa no mercado. Como COO, reestruturou produto, operações e RH, preparando a Teros para escalabilidade. Em 2025, assumiu como CEO, impulsionando a expansão e o crescimento sustentável da companhia.