Levou pouco tempo desde a implementação do Open Finance no Brasil para o modelo se consolidar como uma das principais referências globais. A trajetória até esse reconhecimento, entretanto, foi marcada por desafios técnicos, pressões regulatórias e um ritmo acelerado de entregas. Ao podcast da Let’s Money, esse foi um assunto tratado por Erick Domingues, General Manager da Raidiam, empresa britânica especializada em infraestrutura para sistemas de compartilhamento de dados.
Foto: Let’s Money
Domingues contou que a trajetória da empresa no Brasil começou ainda em 2019, quando o Banco Central iniciou conversas para importar uma estrutura já consolidada no Reino Unido. “A gente tentou explicar porque fazia sentido não reinventar a roda. E foi uma coisa que acho que o Banco Central fez muito no começo. Dessa conversa inicial a gente acabou conseguindo”, disse.
A parceria resultou inicialmente em dois grandes projetos: o diretório central do Open Finance, iniciado em 2021, e o sistema de testes de certificação, responsável por validar o funcionamento das APIs das instituições financeiras.
“Acho que foi isso que fortaleceu muito a posição da rede aqui: a gente é isenta, a gente não quer vender nada para os bancos — nunca foi nosso objetivo. O nosso foco, com a estrutura, é garantir o sucesso da implementação do bem. É como eu falei da parte do motor: a gente começou a construir o motor de certificação, e eu acho que isso é uma coisa importante hoje no Open Finance, especialmente no contexto do Brasil. Para você subir só uma API em produção, precisa passar pelos testes. Eles foram desenvolvidos para isso desde 2021, no final de 2021. É um trabalho importante, mas também é um trabalho "maldoso". Por quê? Porque o banco odeia a gente nessa cadeia”
Nos primeiros meses, o cenário era bem desafiador. Mesmo com a expertise da Raidiam com o modelo britânico, o Brasil ainda engatinhava em conceitos básicos como construção de APIs padronizadas.
“No começo era difícil e acho que a barreira não era só técnica [...] os bancos não estavam acostumados com a especificação de API, com construir compartilhado. Então, acho que o desafio era pegar esse conhecimento e trazer para o Brasil [...] Fui o primeiro funcionário do Brasil na Raidiam. Meu objetivo é inicial era organizar a estrutura”
Com a coordenação do Banco Central, os cronogramas foram apertados desde o início. Mesmo assim, os prazos tinham um papel estratégico. Essa rigidez teria ajudado a manter o foco do ecossistema.
“O Banco Central pode ter sido agressivo no começo, mas foi uma forma que funcionou. Tem o México, por exemplo: em 2018 eles iniciaram as discussões de Open Finance, antes do Brasil. Eles definiram cronogramas muito amplos e os bancos exerceram muita pressão. O Banco Central disse algo como: ‘vamos fazer a implementação num prazo muito grande’. Quando o prazo é grande demais ou pouco preciso, nada acontece”
A virada
Segundo Domingues, o ponto de virada da percepção internacional ocorreu em 2023. “A gente teve aquele ano de adaptação dos bancos, em que eles pararam de pensar apenas no Open Finance regulatório. Então foi preciso assumir alguns papéis do tipo: ‘vamos criar casos de uso, vamos trazer valor para o consumidor’. E aí, em 2023, a gente conseguiu ver o consumidor já sabendo o que quer”, disse.
Ainda na entrevista, ele falou, com bom humor, do momento em que percebeu essa mudança. Uma alteração que permitiu que o Brasil passasse de aluno a referência.
“Acho que, em 2023, o consumidor percebeu, e a gente também conseguiu mostrar pro mundo. Dá pra mostrar que o que o Brasil fez, fez de forma melhorada em relação às influências externas”
E no Reino Unido?
No Reino Unido, onde a Raidiam nasceu, projeto surgiu com uma forte motivação de aumentar a competitividade no setor bancário. Na época, havia quem dissesse que “trocar de banco era considerado mais difícil do que mudar de cônjuge”. Essa dificuldade foi, aos poucos, sendo resolvida com a criação de mecanismos que facilitaram a portabilidade entre instituições.
Entretanto, depois de atingir esses objetivos iniciais, o sistema britânico começou a perder certo fôlego. A estrutura do OBIE, responsável por coordenar a implementação, foi reduzida, e profissionais começaram a ser realocados à medida que as APIs funcionavam adequadamente. A ideia de expandir o sistema para incluir novos produtos foi deixada de lado sob a justificativa de que o que já estava disponível era suficiente.
No entendimento de Domingues, essa falta de ambição desde o começo acabou comprometendo a sustentabilidade do projeto. É válido dizer que, hoje, os bancos britânicos têm respaldo legal para se opor à ampliação do escopo do Open Banking, o que transforma qualquer tentativa de avanço em uma disputa política complexa, sobretudo em países onde os bancos centrais não atuam de forma independente.
No caso do Brasil, o cenário foi diferente. Desde o princípio, ficou claro que o Open Finance teria uma trajetória de expansão contínua. Já na fase de consulta pública, o projeto brasileiro sinalizava que iria além da simples promoção de competitividade, buscando criar valor por meio do compartilhamento de dados e da construção de diferentes casos de uso.
Essa abordagem mais ampla permitiu avanços em áreas como concessão de crédito, impulsionadas por medidas como a portabilidade e a criação de marketplaces financeiros. Embora esse modelo de marketplace ainda esteja em desenvolvimento, a portabilidade já tem um papel importante em dinamizar o setor e deve servir como base para a evolução das soluções voltadas ao crédito.
E foi justamente para se adaptar à complexidade crescente do ecossistema que a Raidiam decidiu reforçar sua estrutura no Brasil. Atualmente, a equipe local conta com 25 profissionais, dividindo responsabilidades que antes estavam concentradas em poucas pessoas.