
A conjunção de juros ainda elevados, compressão de margens e orçamento de risco sob escrutínio reacendeu uma pergunta incômoda no mercado: por que o crédito para pequenas e médias empresas continua preso a modelos que olham “fotos” do passado? Viviane Meister, cofundadora e CEO da Avra, responde com prática e provocação. Para ela, a forma de ler PMEs no Brasil — mais de 20 milhões de CNPJs, com diversidade extrema de maturidade e dados — pede outro trilho. O da IA aplicada a um problema específico: compreender uma empresa em contexto, não em um único ponto no tempo.
“Crédito evoluiu muito pouco desde a década de 70/80. Estamos acostumados a olhar uma foto daquela empresa em determinado momento. Não faz sentido tomar uma decisão futura baseada num ponto só”, diz.
A Avra construiu um modelo fundacional de IA especializado em PMEs, treinado para prever até seis meses à frente e, segundo a executiva, com cobertura de 99,1% das PMEs brasileiras, um salto frente aos birôs tradicionais, que “conhecem no máximo 70%”.
IA no crédito para PMEs: do “snapshot” ao futuro
A dor é conhecida por quem tenta vender a prazo ou conceder limite a empresas pequenas: dados esparsos, histórico curto ou inexistente, documentos fora do padrão, informalidade e a velha mistura PF–PJ. Na prática, modelos herdados de grandes corporações não “encaixam” nas pequenas e, boa parte delas, fica fora do radar. “Vender a prazo também é decisão de crédito”, lembra Viviane, trazendo o problema do underwriting para além do empréstimo em si.
A Avra parte de um princípio simples: ler a PME onde ela está. Isso significa aceitar que balancetes podem não existir, que o Open Finance para PJ ainda é subutilizado e que o que há são fragmentos — um pedaço nos birôs, outro em bases públicas, outro na relação que a PME mantém com um marketplace, com o banco ou com seu principal fornecedor. A solução, então, é combinar três eixos de dados sob uma arquitetura de IA que generalistas não oferecem.
“Usar só dado alternativo não faz verão. O ganho vem quando combinamos dado tradicional, alternativo e o relacional (first-party) do cliente. Aí o modelo contextualiza o que é uma ‘boa PME’ para cada negócio”, explica.
A tecnologia por baixo é Graph Neural Networks (GNNs) — uma família de redes que entende nós e conexões, isto é, a empresa e seu entorno. Se a “Padaria do Gabriel” abriu hoje, ainda “invisível” ao birô, o grafo permite transferir conhecimento de negócios semelhantes no bairro, no setor, na faixa de preço, no padrão de fluxo. O resultado prático é decidir melhor com poucos dados estruturados, justamente onde o mercado mais tropeça.
“Se eu tenho um bar no Itaim com track record, posso extrapolar parte desse conhecimento para outro restaurante nos Jardins ou no Batel. A beleza está em aumentar o ROI do dado, pois ele não vale só por si, vale pelo que treina no resto do modelo”, diz.
Três camadas de dados
A Avra não vende um “modelo por cliente”. Vende um único modelo fundacional especializado em PMEs, que é envelopado de formas diferentes conforme a maturidade técnica do parceiro. Debaixo do capô, três camadas se conversam:
- Tradicional — tudo que o mercado já usa (protestos, processos, passagens cadastrais);
- Alternativo — localização, tráfego de rua (como proxy de receita no varejo), dados de sócios, contexto do bairro, entre outros. “A iluminação do CEP” ou o “teclado do celular” sozinhos não ensinam o suficiente; combinados, tornam-se sinais;
- Relacional (first-party) — a relação da PME com o cliente da Avra (banco, marketplace, seguradora). PMEs pagam primeiro quem é core para seu negócio; logo, ‘boa PME’ depende do contexto.
“Uma PME boa para a Ambev é diferente da PME boa para um banco. Por isso, além do modelo fundacional, geramos uma ‘lente’ contextualizada por cliente. É complementar, não é ‘meu modelo versus o seu’.”
Na entrega, há dois formatos. Para times maduros de dados/ML, a Avra fornece embeddings — vetores com a inteligência comprimida para entrar no modelo do cliente e somar predição. Para quem ainda não está nesse estágio, entrega um score simples (o “numerinho” que se pluga na política atual).
Em ambos os casos, a promessa é expandir limites para bons pagadores e capturar mais cedo os maus. Em POCs recentes, a empresa reporta redução de 20% a 30% da inadimplência.
“Crédito no mundo é binário demais: dou ou não dou? A pergunta de um milhão de dólares é ‘em quais condições de prazo, garantia, colateral essa PME é um bom cliente?’”, crava Viviane.
Produtos
O mesmo modelo gera três produtos, alinhados do topo ao fundo do funil:
- Crédito. Decisões mais assertivas com a lente contextual. O ganho típico se mede em duas frentes: mais receita (ao aumentar limites para PMEs com boa propensão) e menos custo (ao prever inadimplentes antes e ajustar política/preço). O cliente escolhe embeddings ou score.
- Hiperpersonalização. Responde “em quais condições essa PME é um bom cliente”. Isso inclui ajuste de prazo, garantia, preço, e até canal (WhatsApp, gerente, agência). A lógica: oferta certa → maior chance de pagamento → maior share of wallet.
- Segmentação. Depois de aprender “o que é uma boa PME” para aquele parceiro, o modelo varre o Brasil para encontrar outras com alto match, permitindo entrar com a melhor oferta já no topo de funil, otimizando CAC e evitando congestionar a operação com leads que não terão crédito aprovado.
“Os bancos querem trazer para o topo de funil a PME que já vai aprovar. Por que gastar estrutura com quem não aprova? É virar a pirâmide e ir direto ao cliente ouro”, resume.
Na ponta, isso conversa com a realidade do Open Finance PJ: baixa adesão hoje limita o uso “puro” do dado bancário; ainda assim, quando existe, o modelo aprende e propaga padrões para outras PMEs com características semelhantes. É IA trabalhando como ponte entre ilhas de informação.
Explicabilidade, ética e atualização contínua
Se IA em core de crédito ainda levanta sobrancelhas, parte do trabalho é desmistificar. A Avra insiste que IA não é sinônimo de caixa-preta. Seus modelos vêm com explicabilidade, estabilidade monitorada e trilhas de auditoria para atender exigências bancárias (e tranquilizar conselhos e comitês de risco). Regressão logística e políticas continuam existindo; a IA pode ser uma variável dentro da arquitetura tradicional ou um bloco a mais, ortogonal.
“Usar IA não exclui o resto. Dá para explicar, auditar e controlar. E não usamos dado sensível que gere viés discriminatório. Ética é requisito, não adereço”, afirma.
Outra peça de conforto é a cadência de P&D. A empresa mantém um time de research dedicado, com gente conectada à academia e atualiza o modelo quase mensalmente. O objetivo é absorver sinais novos (novas formas de informalidade, mudanças de comportamento setorial, dinâmicas de canal) sem instabilizar as políticas dos clientes.
“Números não mentem. Quando mostramos ganho em limite e queda de atraso, a conversa com CFO e conselho anda. É somar, não substituir o que já foi construído.”
No pano de fundo, há uma defesa de modelos especialistas. Se a primeira onda da IA popularizou LLMs generalistas, a próxima tende a consolidar modelos menores e focados (saúde, crédito PJ, varejo de baixa renda). Para PMEs, isso importa: modelo especialista enxerga nuances brasileiras, consegue ler o “entorno” e funciona com pouco dado estruturado.
“Brasil é fascinante para IA em crédito: muita gente fora do radar. A missão é incluir quem hoje não aparece nos scores — com base técnica, explicável e segura.”
Ao fim, o recado é pragmático. Acesso a crédito é inclusão econômica e também negócio. Bancos, fintechs, seguradoras e marketplaces ganham quando acertam a mão no risco-retorno de PMEs. Mas acertar em escala não virá de um único birô, de um único extrato ou de um único algoritmo. Virá de combinar fontes, contextualizar relações e medir resultado.
Viviane fala com a energia de quem já esteve dos dois lados do balcão, banco e empreendedor, e sabe o que é não conseguir um cartão PJ mesmo com caixa em conta. Talvez por isso o discurso nunca perde de vista o impacto: aumentar limites para quem merece, reduzir inadimplência e trazer milhões de negócios para dentro do mapa. Com IA, sim. Mas com método, transparência e propósito.
“A Avra conhece 99,1% das PMEs brasileiras. E crescendo porque eu não dependo do CNPJ como única fonte da verdade. A pergunta certa não é ‘dou crédito ou não’. É: em quais condições essa PME é um bom cliente?”