
O Open Finance brasileiro vive um paradoxo: os números disparam, mas a sensação de “motor engatado” ainda não chegou para boa parte do mercado. Uma pesquisa inédita da EY — combinando a leitura de mais de 2.000 reclamações no Reclame Aqui, entrevistas com 50+ profissionais e análises por segmento (PF, PJ e protagonistas do ecossistema) desmonta mitos, confirma dores e aponta oportunidades concretas para transformar volume em valor. O Let’s Money Podcast conversou com Chen Wei Chi e Augusto Melo (EY) para entender a radiografia sem maquiagem.
“Qual é a situação real do Open Finance? Falam-se de um monte de casos de uso… está tão bonito como parece?” — Chen Wei Chi
“A média de novos compartilhamentos é de 2 milhões de usuários por mês.” — Augusto Melo
O quadro geral é de expansão rápida. Os consentimentos únicos já passam de 60 milhões, com os consentimentos totais na casa dos 100 milhões. O crescimento não é só orgânico: bancos grandes e digitais ativaram suas máquinas comerciais. A Caixa — citada na conversa — entrou de cabeça com campanha de agência/WhatsApp, enquanto PicPay, Nubank e Mercado Pago lideram em penetração por embutirem o Open Finance em jornadas contextuais (crédito, investimento, abertura de conta), em vez de um botão solto de “compartilhar dados”.
“O grupo que ‘esconde’ o Open Finance dentro de uma jornada tem conversão melhor.” — Augusto Melo
“Sai do ‘me dá seu consentimento’ e entra no ‘me dá seus dados para melhorar sua oferta’.” — Chen Wei Chi
Um achado que derruba lugar-comum na comunidade: o cliente final sabe o que é Open Finance — e o que esperar dele. As reclamações detalham o mecanismo de compartilhamento e cobram contrapartida visível.
“O top 1 no Reclame Aqui era: ‘compartilhei meus dados, mas mesmo assim…’” — Augusto Melo
Open Finance: crescimento sem valor percebido não fecha a conta
A pesquisa mostra dois terços dos bancos dizendo que o Open Finance ainda não “valeu a pena”. E um terço admite que não saiu do regulatório. Parte disso está no desenho de produto e comunicação de valor: sem benefício claro, o cliente se sente “roubado”.
Exemplo prático: o Banco do Brasil criou um “extrato de benefícios do Open Finance” (mostrando o que o cliente ganhou — limite, taxa, ofertas — por compartilhar dados). É o tipo de feedback que materializa a troca. A analogia de Augusto é boa: “tipo a tela ‘você economizou R$ 300’ do Clube iFood”.
Checklist para aumentar valor percebido:
- Propósito explícito na hora do consentimento (o “porquê” antes do “como”).
- Entrega imediata (ou sinalizar quando virá): taxa melhor, limite, experiência mais rápida.
- Recibo de valor: tela/área que registre benefícios acumulados por causa do Open Finance.
O ritmo das APIs: a cada cinco dias, outra versão
Outro dado que explica o “tranco”: surge uma API nova (ou versão) a cada 5 dias no ecossistema. O ritmo diminuiu um pouco, mas segue alto para estruturas internas que já estão no limite.
“Não é que é caro — é que não tem time. Muda a cada cinco dias.” — Augusto Melo
Além do volume, há dispersão de foco: 50% das APIs concentram-se em contas e cartões, 5 de 12 APIs de produto têm baixo volume e cerca de um terço das queixas é sobre qualidade de dados. Para a EY, foco Pareto (menos escopo, mais capricho) seria mais eficiente — lição que Chile e Argentina já consideram em seus regulatórios. No Brasil, recalibrar prioridades (em lugar de só adicionar escopo) ajudaria a tirar times do looping regulatório e levá-los ao valor de negócio.
“Não adianta abrir escopo que o mercado não absorve e o consumidor não vê vantagem. Foque no que vira caso de uso.” — Chen Wei Chi
Mindset que funciona: de “cumprir regra” a “ganhar principalidade”
Os players que superaram o regulatório usam um mindset de vantagem competitiva: pedem consentimento onde faz sentido, operam casos de uso reais, medem principalidade e não esperam “payback instantâneo”.
“Quem superou o regulatório já pensa em como chegar no cliente e tirar proveito. O ‘como fazer’ (dentro/fora de casa) vira detalhe.” — Chen Wei Chi
Open Finance para PJ
Se no PF o trem anda, no PJ ele ainda patina. Só 3% das empresas compartilham dados no Brasil (no Reino Unido são 20%). Por quê? Faltam “jobs to be done” claros no cotidiano da empresa.
Exemplo britânico: pagar impostos via Open Banking — dor diária, jornada objetiva, ganho de tempo brutal. Aqui, jornadas PJ seguem menos desenvolvidas que PF; CRM, processos e dados internos precisam de salto para o Open Finance entregar.
Há sinais interessantes: no recorte de transmissão PJ, o Nubank aparece como grande transmissor, com ~237 mil dos ~750 mil consentimentos únicos — leitura provável: empresas usam o Nubank no dia a dia e compartilham dados para buscar crédito/serviços em outros lugares.
“É caso prático que convence PJ. ‘O imposto que leva 3 horas, você paga em 3 minutos’.” — Augusto Melo
Caminho prático para PJ:
- Priorizar poucos casos com dor grande (pagamentos recorrentes, conciliação, impostos, folha, cobrança).
- Simplificar multi-alçadas na jornada de consentimento e execução.
- Mostrar benefício operacional e financeiro mensurável (tempo, taxa, erro evitado).
Alta renda e investimentos: canhão descalibrado
O capítulo de alta renda traz um choque de realidade:
- Só 15% dos investidores compartilham dados via Open Finance — muito baixo para o potencial.
- Mis-match entre alocação e chamadas de API: enquanto 30–35% do volume investido está em fundos, ~70% das chamadas de API se concentram neles; renda variável tem peso alto de carteira, mas pouca chamada (< 7%).
Tradução: estamos chamando dados onde o cliente não está e deixando de olhar onde ele de fato investe. Resultado: ofertas descoladas (“fondos de RF” para quem é “equities”) e baixa tração.
“O negócio está descalibrado: chamamos onde o cliente não investe e ignoramos onde ele está.” — Augusto Melo
Parte da explicação é organizacional: Open Finance está mais ‘empurrado’ por evangelizadores do que ‘puxado’ pela estratégia corporativa. Em muitas instituições, crédito abraçou, investimentos vai “mais ou menos” e outras áreas nem começaram.
Correção de rota para alta renda:
- Alinhar consumo de API à alocação real da base (fundos ≠ tudo).
- Casos de uso de portabilidade, otimização fiscal, câmbio e consolidação global (alta renda diversifica fora).
- Human-in-the-loop: bankers e assessores com ferramentas de IA + Open Finance para conduzir a Next Best Conversation.
Open Finance na prática: medir uso e calibrar intensidade
A EY calculou uma “taxa de uso”: quantas vezes por dia cada banco aciona dados do mesmo cliente. A média do ecossistema é 12 — mas há vizinho rodando só 2 e quem passa de 200 (com custos e ruído desnecessários). Nem oito nem oitenta: governança de chamadas, webhooks, cache inteligente e políticas por caso de uso reduzem custo, latência e atrito.
“Tem instituição que chama mais de 200 vezes por dia o mesmo cliente. Tudo isso tem custo.” — Augusto Melo
Foco em jornada, dado utilizável e recibo de valor
O padrão dos cases que performam:
- Jornada integrada (o consentimento aparece onde o usuário já está motivado).
- Dado limpo, utilizável e acionável (o time de negócio consegue trabalhar).
- Recibo de valor (mostra claramente o ganho individual).
“A gente só sente valor quando ele é percebido — e dito. Sem isso, o cliente se sente roubado.” — Chen Wei Chi
E o que vem agora?
A EY pretende rodar o ecossistema com recortes personalizados por instituição, levar achados ao Banco Central e influenciar próximos passos (priorização de escopo, métricas de qualidade, foco em casos de uso). Em paralelo, relançou o Finance View: um assistente para gerentes e assessores, que cruza dados do Open Finance com o portfólio do banco para sugerir a “Next Best Conversation” (portabilidade, oportunidade de rendimento, produtos complementares).
“IA + Open Finance potencializa a Next Best Conversation — melhora o relacionamento e a compreensão do cliente.” — Chen Wei Chi
“Pensa num ‘Tinder do Open Finance’: ele cruza portfólio do banco com dados compartilhados e sugere conversas com gatilho claro.” — Augusto Melo
Open Finance: do hype à execução
Para times de produto e dados
- Mapeie o funil de consentimento por jornada (onde aparece, qual copy, qual oferta) e teste mensagens com propósito (“traga seus dados para reduzir sua taxa em X%”).
- Implemente um “extrato de benefícios” que mostre, no app, o que o cliente ganhou por compartilhar.
- Priorize dados que viram decisão (crédito, score comportamental, tesouraria PJ, portabilidade de investimentos) e desligue chamadas supérfluas.
Para líderes
- Mude o KPI: de “consentimentos” para “principalidade + receita incremental por cliente com consentimento”.
- Reorganize o programa: Open Finance puxado por estratégia, com donos por jornada (crédito, investimentos, PJ), não por “squad regulatório”.
- Escolha suas batalhas de API: Pareto nos próximos 12 meses. Menos escopo, mais profundidade e qualidade.
Para comunicação/comercial
- Treine canais humanos (agência, gerente, assessor) com scripts de valor e provas de ganho (antes/depois).
- Evite o jargão. Cliente compra benefício, não “open alguma coisa”.